terça-feira, 26 de agosto de 2014

Percepção, ilusão, decisão

Essa semana uma amiga me contou a seguinte história: "Meu filho, quando tinha uns 8 ou 9 anos, me veio com uma foto dele e disse 'mãe, esse sou eu?'. 'É sim, amor'. Mas eu sou esse da foto que você vê ou o que eu vejo? Porque eles podem ser diferentes, não é? Eu chamo aquela cor de azul porque você me ensinou que ela se chama azul, mas outro dia me disseram que é verde. A gente vê coisas diferentes?".

Acho que nem todos nós temos a sorte de ter um filho tão perceptivo quanto ao mundo que nos cerca e menos ainda tão claro quanto às diferentes formas pelas quais nós o vemos. Realmente nem sempre vemos o mesmo tom de azul (ou verde).


Observando o aumento da intolerância, da violência e do pensamento superficial entre diversas camadas de nossa sociedade resolvi escrever uma série de artigos sobre o que chamo de "maturidade antropológica", que, para mim - se é que é possível fazer essa definição tão curta - a capacidade que temos de conviver com a alteridade, com a diferença. Seja na religião, na etnia, na cultura ou nos costumes, nosso mundo cosmopolita globalizado vem sofrendo um refluxo fortíssimo no que tange à convivência entre diferenças que, inerentes à espécie humana, estão cada vez mais presentes em nossas vidas.

Decisão
Quando tomamos qualquer decisão procuramos, dentro do possível, sermos o mais objetivos possível. Procuramos tomar decisões claras e objetivas no que concerne ao trabalho - em grupo ou individual - , e compreender as diferenças de opinião, valores e objetivos para considerá-las na hora de minimizar os possíveis conflitos que possam haver antes ou depois da decisão.

A percepção descreve e explica os mecanismos que permitem a cada um de nós entrar em relação com os outros, interagir com seu meio e, dentro do possível, criar as pontes necessárias para uma melhor adaptação entre as partes.

Nos próximos 6 artigos do blog Coach Quíron faremos um especial sobre a percepção, sobre a maneira como vemos o mundo e como reagimos a ele criando alianças, conflitos ou confluências. Este primeiro artigo será sobre a objetividade e origem do conhecimento e, através dele teremos uma mais vasta leitura dos conceitos de percepção e inteligência.

Os próximos artigos sobre o tema serão sobre:
2. Noções de sensação, percepção e cognição
3. Sistema nervoso e compreensão das atividades perceptivas
4. Atividades mentais que intervêm no ato de perceber
5. Erros de percepção: correção e compensação
6. Empatia e maturidade antropológica: compreensão do ponto de vista alheio

Consciência e conhecimento
O conceito de percepção está, há muito tempo, vinculado à questão do conhecimento. Como geralmente acontece com as nossas referências ao pensamento ocidental podemos encontrar também o problema da percepção em Platão (427-347a.C.) e em seu discípulo Aristóteles (384-327a.C.). Ambos se questionaram sobre a nossa busca por conhecimento, de diferentes formas.

Segundo Aristóteles os nossos cinco sentidos oferecem os elementos necessários ao conhecimento e, a partir deles, a razão os organiza, tornando-os inteligíveis. Essa maneira de enxergar nossa relação com o mundo marcou profundamente o pensamento científico do Ocidente: existe um mundo objetivo, uma "verdade" na natureza, e o nosso julgamento desse mundo objetivo é que é a fonte dos "erros" que praticamos na tentativa de entender e decidir sobre o mundo.

Objetividade e Subjetividade
Antes que partamos para uma discussão que possa parecer uma profunda análise sobre o sexo dos anjos, vamos deixar claro que, a partir do momento em que - em qualquer contexto - somos levados a tomar decisões, a questão da objetividade e da subjetividade se impõe. É uma questão de ordem prática tanto quanto de consciência e maturidade e, como tal, um panorama sobre o que até hoje já pensamos e produzimos sobre o tema, pode nos ajudar a perceber melhor as raízes culturais de nossos pensamentos e julgamentos e - se necessário - como analisar e decidir de forma mais clara, responsável e - por que não? - criativa!

Na verdade todo o campo da política que lida com resolução de problemas e da tomada de decisão se defronta com um problema de ordem tanto psicológica quanto antropológica: a questão da subjetividade e a possibilidade de aproximar as tomadas de decisão de critérios mais objetivos.

Neutro?
Quando se olha mais de perto a questão da objetividade e da subjetividade percebemos que o verdadeiro problema está no fato de que tendemos a ligar a objetividade à neutralidade, à imparcialidade, à verdade única e inteira e a subjetividade a tudo aquilo que é arbitrário, desigual e do reino da especulação imaginativa. Mas será que o comportamento objetivo ou a decisão objetiva são, sempre, neutros? Fico pensando que eu, por exemplo, posso ser objetivamente a favor da paz mundial, o que não é nem neutro em relação a guerras e nem muito menos deixa de ser especulativo ou imaginário, pelo menos não no mundo onde vivemos.

Real?
O problema do conhecimento também está implícito na nossa dificuldade de perceber o que é a realidade. O que garante a cada um de nós que o que percebemos é efetivamente o real? Pensemos no exemplo do filho da minha amiga lá no início do texto. Ele efetivamente vê uma pessoa que a mãe não vê. Afinal de contas a percepção que ele tem dele mesmo é completamente diferente da percepção da mãe: ele se ouve com outra voz, têm total acesso a seus pensamentos e compreende melhor - ou pelo menos intui melhor - suas próprias motivações do que a mãe, naturalmente. Em certa maneira eles efetivamente não vêem a mesma pessoa na mesma foto.

Do ponto de vista do ceticismo radical podemos dizer que não estamos absolutamente certos de coisa alguma, do ponto de vista do senso comum é possível dizer que estamos certos de alguma coisa mesmo quando não temos uma certeza absoluta.

Formação da percepção
A percepção é o produto de três fatores: (1) do próprio estímulo, (2) da interpretação do estímulo graças às atividades cognitivas e (3) dos fenômenos psíquicos associados a este estímulo, como a projeção.

Ilusão da certeza e certeza da ilusão
Podemos explicar a ilusão da certeza não só pelo plano psicológico, mas, também, através da nossa biologia. A consciência produzida pela percepção gera fatalmente o sentimento de objetividade, o que se explica por três fatores: Em primeiro lugar nós não temos consciência de todas as atividades do nosso sistema nervoso, ou seja, quando percebemos não temos consciência de todos os dados sensoriais que estimulam os receptores nem do tratamento a que o cérebro submete tais dados. Nosso sistema nervoso é responsável pela transmissão dos dados sensoriais até o cérebro e por sua organização, que objetiva proteger nossa vida e assegurar nosso desenvolvimento no ambiente em que vivemos. Esse mecanismo é autônomo.

Em segundo lugar, mesmo quando percebemos alguma coisa, raramente estamos cientes da maior parte das informações já armazenadas que vão se ajuntando aos dados sensoriais para completá-los, corrigi-los e dar-lhes um sentido. Ou seja: não temos consciência dos sistemas de representação que são utilizados para construir as imagens em nossa mente e que usamos para julgar e decidir sobre o ambiente, as pessoas e os comportamentos ao nosso redor.

Em terceiro lugar não temos a menor noção dos mecanismos de percepção subliminar que incorporam dados sensoriais às nossas representações mentais dos objetos, pessoas ou contextos percebidos. Basicamente temos filtros que, em geral, não conhecemos. É preciso um bom trabalho psicoterapêutico para trazê-los à consciência. É um trabalho eterno de auto-percepção e conhecimento.

Leituras perceptivas
O estudo da percepção nos leva a compreender melhor os fenômenos da consciência, nossas crenças e emoções e, consequentemente, a racionalidade das nossas condutas e dos nossos afetos. Quando uso o termo racionalidade preciso esclarecer uma questão muito séria: Não tomo por "racional" apenas o que se aplica ao estreito conceito de razão cartesiana, mas abarco também outras "razões" íntimas nossas. No trabalho do processo de coaching nos deparamos com razões (no sentido de motivações para ação ou inação) de ordem afetiva, cultural ou simbólica e, muitas vezes, precisamos fazer uma escavação mental dessas "razões" para que o cliente possa decidir, por exemplo, se um determinado comportamento limitante seu, que está baseado num sistema de valores de seu bisavô, ainda deve ser levado adiante ou se ele pode, consciente e responsavelmente, criar um caminho alternativo para si mesmo.

O estudo da percepção desvenda as atividades da inteligência e coloca em relevo a riqueza da subjetividade do indivíduo. O estudo da motivação (que faremos mais adiante, em outra série de artigos) revela as necessidades e os campos de interesse da pessoa e valoriza a lógica interna de seus comportamentos no contexto em que ela se encontra. Esteja essa lógica dentro do que convencionamos entender por lógica matemática (ou econômica, o que não é a mesma coisa) ou se essa lógica está alicerçada em outras bases, como a afetividade e as relações sociais ou pessoais.

Para compreendermos bem nossas percepções - e consequentemente como vemos, julgamos e decidimos ao longo de nossas vidas - é preciso termos em mente que boa parte das nossas "razões" não são de caráter "racional". Só a partir daí poderemos iluminar determinados aspectos de nossas auto-sabotagens ou mesmo de nossas determinações ou teimosias em busca dos nossos objetivos.

Origens do conhecimento
Perceber que há outras razões além da lógica matemática não é colocá-las acima desta. É apenas colocá-las ao lado, uma da outra, para que possamos estar cientes não só de sua existência como da forma pela qual cada uma delas age - em maior ou menor grau - em nossas decisões.

Descartes
Então comecemos com Descartes (1596-1650). Para ele apenas os elementos psico-físicos da percepção constituem a fonte do conhecimento. Esta concepção está na origem da psicofisiologia, ou seja, no estudo das relações entre as atividades fisiológicas (físicas e somáticas) e as atividades psicológicas (o pensamento, as atividades e o comportamento). Descartes reconhece o valor da informação dita objetiva, da informação presente no meio circundante, dos dados materiais.

Considerando o fato de que os receptores sensoriais são continuamente estimulados por uma quantidade avassaladora de informações sobre o ambiente, podemos nos perguntar que meios e mecanismos permitem à nossa percepção conseguir colocar ordem nesse universo caótico produzido pela sensação. Talvez essa seja uma das grandes razões para a criação da cultura entre nós. Precisamos concordar sobre algumas coisas mínimas para convivermos, afinal de contas.

Locke e Hume
Para empiristas como John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776) a percepção faz associações de dados sensoriais regidas por leis de similitude (parecido/diferente) e de contiguidade espacial-temporal (acontecimentos simultâneos). Essas experiências seriam apreendidas por nossos juízos (capacidades de julgamento e decisão) como "leis" que se tornariam nossas certezas no decorrer das experiências dos indivíduos com seus ambientes.

Kant
Immanuel Kant (1724-1804) dá uma explicação completamente diferente dos mecanismos perceptivos. Segundo ele nós não podemos alguma coisa da qual já não detenhamos algum conhecimento. É como aquela história de que os índios brasileiros não teriam visto as caravelas dos portugueses, franceses e holandeses justamente porque não tinham uma noção de embarcação daquela magnitude e, ao invés de identificarem como barcos, identificaram apenas como "nuvens baixas" (as velas das caravelas) flutuando sobre as águas e não deram maior importância ao fato.

Existiriam, segundo Kant, ideias e conhecimentos inatos, tais como a unidade, a totalidade, a reciprocidade, e, especialmente, o espaço e o tempo. Esses conhecimentos elementares forneceriam à percepção estruturas que lhes permitissem colocar ordem no caos perceptivo sensorial. O sentido que elas permitem encontrar na experiência sensorial guiaria as atitudes e as condutas das pessoas.

Gestalt
A ideia de que uma estrutura mental possa servir para selecionar, e organizar, os dados sensoriais foi destacada pela teoria da Gestalt. De acordo com esta teoria a pessoa que percebe um objeto capta imediatamente a significação dele em sua totalidade e o sentido que encontra nele impõe uma estrutura aos elementos que compõem este objeto. Por exemplo quando percebemos uma mesa atribuímos imediatamente uma forma e uma função (é uma mesa para refeições); essa forma e essa função serão úteis para descrever o objeto (é redonda ou quadrada, de vidro ou madeira, tem um ou quatro pés etc).

A teoria da gestalt nos traz uma lei importante no estudo do pensamento: o todo (a forma) é mais que a soma das partes (dos elementos). Para compreender o sentido  que pode ter um objeto (uma cruz, por exemplo) ou um fenômeno para uma pessoa, é preciso saber como ele se apresenta no campo de consciência dessa pessoa, já que é a forma que tem as relações entre os elementos desse objeto ou desse fenômeno que possui um sentido para ela, e cada elemento não pode ser compreendido senão pelas relações que tem com a forma. Dessa óptica os elementos sensoriais não são os elementos estruturantes da experiência consciente, mas os elementos estruturados pelo campo da consciência. Ou seja: Nossa consciência e subjetividade influenciam poderosamente na nossa percepção da realidade e nos nossos julgamentos e decisões tomados a partir daí.

Psicologia cognitiva e criatividade
Atualmente as pesquisas sobre a percepção estão associadas à psicologia cognitiva. Os estudos sobre a percepção colocam em evidência as riquezas do pensamento, ou a faculdade da imaginação criativa como forma de reestruturar, sempre de modo original, as experiências e os conhecimentos adquiridos no decorrer de sucessivas gerações.

Cultura
É inevitável que a cultura influencie nas atividades perceptivas, já que é ela quem fornece a maior parte dos filtros perceptivos necessários para dotar de significado as experiências da existência. Mas não nos deteremos, agora, sobre ela.

Ondas sobre ondas
A percepção se baseia em atividades complexas que antecedem as atividades da inteligência, mas que, no fluxo da vida e das nossas decisões, são, também, consideradas válidas através de um filtro perceptivo criado através das nossas experiências ao longo do tempo. Sem uma devida atitude consciente da nossa parte e uma motivação focada para observarmos sobre quais arcabouços criamos as percepções que usaremos para tomar nossas decisões, valores e crenças, dificilmente poderemos sair vitoriosos das nossas constantes auto-sabotagens, incongruências e incoerências tão típicas, humanas e naturais quanto problemáticas na nossa jornada rumo ao melhor de nós mesmos.

Esclareça as percepções
Proponho, para essa semana, que, em qualquer decisão que tomemos, procuremos esclarecer para todas as partes envolvidas o quê significa cada um dos valores em questão:
  • "Todos queremos conviver bem", por exemplo. Ok, então o que é "boa convivência" para cada um de nós? 
  • "Todos queremos resolver esse problema." Ok, então o que é "resolver" e porque aquela situação foi identificada como um "problema" por cada um? 
Se possível façam por escrito e troquem suas respostas. Observem  o que muda. Percebeu?

texto por Renato Kress